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COM CIÊNCIA NEGRA
Guilherme Aparecido Couto, Jéssica Sousa Alves, Meryene de Carvalho Teixeira

Última alteração: 2023-07-27

Resumo


RESUMO

A Ciência é reconhecida com seu nascimento no continente europeu na modernidade, sendo homens brancos as representações de cientistas reproduzidas em materiais didáticos. Porém, há várias comprovações de que antes disso havia ciência sendo desenvolvida no continente africano. Mas devido à escravização desses povos, essa ciência foi, e ainda é, embranquecida e/ou apagada causando fortes danos às populações afrodescendentes. Para reparar tantos anos de exclusão da história (e) dos negros nos espaços escolares, a Lei 10.639/03 vem tornar obrigatória a inclusão da História e Cultura Africana e Afro-brasileira como tema nos componentes curriculares. Assim, o objetivo deste projeto foi implementar a Lei 10.639/2003 no ensino de Química III trazendo como referências e aplicações a história, os conhecimentos e as culturas africanas e afro-brasileiras. O projeto teve como meta instigar nossos jovens negros e negras a serem cientistas nas mais diversas áreas a partir do conhecimento da sua própria cultura, além de contribuir com ações antirracistas. As ações realizadas durante o ano de 2022 tiveram como foco a integração das matérias lipídios, biodiesel, meio ambiente, funções orgânicas e suas propriedades físicas e químicas, polímeros, reação de saponificação e ação dos surfactantes com práticas, história, ciência e cultura afrodescendentes. Essa proposta pedagógica chamada de Com Ciência Negra, trouxe novos materiais didáticos para dentro de sala de aula, materiais esses que tinham como objetivo apresentar o conteúdo da disciplina dentro de uma cultura africana e/ou afrodiaspórica. Debates, experimentos e exposições foram realizados durante as aulas trazendo conhecimentos e corroborando com um ensino antirracista e acolhedor. Os estudantes não mostraram resistência diante essa nova metodologia e alguns aproveitaram os momentos para esclarecer assuntos de cunho racistas.

Palavras-chave: Química. Lei 10.639/03. Afroconhecimento.

INTRODUÇÃO

As Ciências Exatas e suas Tecnologias compreendem diferentes áreas do conhecimento tais como medicina, biologia, matemática, física, química e as engenharias. Nelas encontra-se mentes e mãos de homens e de mulheres negras que colaboraram, por meio de seus estudos, pesquisas e com seus inventos, para avanços nas mais diferentes áreas científicas, econômicas e ambientais.

Porém, historicamente, a Ciência foi reconhecida com seu nascimento no continente europeu na modernidade, tendo como representações de cientistas reproduzidas em materiais didáticos de ciências a figura de homens brancos. Todos os saberes produzidos por povos ancestrais anteriores às civilizações europeias foram renegados e silenciados, mas foram fundamentais para a estruturação do conhecimento greco-romano.

Sabem das invenções e descobertas acontecidas no antigo Egito mas esquecem que o Egito fica no continente Africano e sua população é negra. Por falar em negro, as palavras negro, branco, amarelo e indígena foram criadas pelos povos europeus com a finalidade de hierarquizar racialmente colocando o homem branco no topo com todos os adjetivos positivos de inteligência, beleza, pacificação; o amarelo em segundo lugar; o indígena em terceiro; e o negro no último patamar de humanidade restando as partes ruins, naturalizando assim o lugar dessas populações que foram escravizadas pelos brancos (MACHADO, 2015).

Essa escravização foi fundamental no processo de negação do potencial negro humano de produzir o novo. Mas mesmo diante da hegemonia branca, os povos africanos e afrodescendentes não deixaram de inventar e inovar. A questão é que esta genialidade foi embranquecida ou pouco (nunca) divulgada não fazendo parte dos materiais didáticos escolares corroborando com o Racismo Institucional (ALMEIDA, 2020).

Sendo assim, falar de Ciência Negra em uma sala de aula constituía um embate direto a esse racismo institucional que desenvolve livros didáticos eurocêntricos e poderia ser alvo de processos e demissões. Até que em 2003 é estabelecida a primeira ação afirmativa a Lei 10639/2003, uma importante vitória do Movimento Social Negro, que tornou obrigatória, para todos os estabelecimentos de ensino, a inclusão da História e Cultura Africana e Afro-brasileira como tema nos componentes curriculares (BRASIL, 2003).

MOTIVAÇÕES E OBJETIVOS DO PROJETO

São muitos casos de racismos assistidos cotidianamente em instituições de ensino, falta de material que traga pertencimento às pessoas negras dos lugares que estudam, enfim surge a necessidade de implementar práticas pedagógicas que proporcionem mudanças atitudinais, didáticas e materiais que corroborem com a autoestima e pertencimento dos/das estudantes negros e negras, bem como minimizem atividades antirracistas.

Acredita-se que trabalhar a Ciência Negra, ou seja, envolver as Relações Étnico-Raciais nas aulas de Química III é dar uma nova visão aos/às adolescentes negros e negras da sua própria origem, é atuar diretamente com ações afirmativas com o objetivo de reverter a representação negativa dos negros imposta pelo colonialismo. É estimular o interesse dos estudantes negros pelo conteúdo e pela verticalização dos estudos, além de ser uma forma de contribuir para o orgulho de ser um afrodescendente. Além disso, trabalhar o conhecimento de maneira afrodescendente (e não eurocêntrica) é uma excelente oportunidade de combater o preconceito e o racismo. Afinal, conhecimento gera respeito!

Assim, o objetivo do projeto foi implementar a Lei 10.639/2003 no ensino de Química III trazendo como referências e aplicações a história, os conhecimentos e as culturas africanas e afro-brasileiras. Com isso espera-se instigar nossos jovens negros e negras a serem cientistas nas mais diversas áreas a partir do conhecimento da sua própria cultura.

 

CAMINHOS METODOLÓGICOS E RESULTADOS

Durante as aulas de Química III parte do conteúdo foi ministrado utilizando-se de referências e temáticas desenvolvidas por pessoas negras (em África ou não). O projeto foi aplicado a todas as turmas dos terceiros anos do ensino médio integrado do IFMG Campus Bambuí. As atividades ocorreram ao longo do ano de 2022 e foram chamadas de Ações, sendo estas descritas no Plano de Ensino do estudante.

Ação 1 – Estudo da química ambiental por meio do biocombustível (óleo de dendê como foco) e o estudo sobre os lipídios: a química do e no dendê.

  • Materiais didáticos de referência: Africanidades em ensino de química: uma experiência no contexto da produção de biocombustíveis e aquecimento global (ALVINO; BENITE, 2017) e Tem dendê, tem axé, tem química: Sobre história e cultura africana e afro-brasileira no ensino de química (SILVA; et al., 2017).
  • Matérias explanadas: Lipídios, fabricação do biodiesel e meio ambiente.
Desenvolvimento das aulas ministradas: ao longo das explicações sobre lipídios, como exemplo, foi trazido o conhecimento sobre óleo de dendê abordando o conteúdo descrito nos artigos. Em uma segunda aula abordou-se a reação de transesterificação trazendo a possibilidade do uso do óleo de dendê usado para fabricação do biodiesel.

Ação 2 – Estudo das funções orgânicas e solubilidade dos compostos orgânicos por meio da compreensão e a construção sócio-histórica do Brasil durante o ciclo do café.

  • Material didático de referência: A química do café e a lei 10.639/03: uma atividade prática de extração da cafeína a partir de produtos naturais (BASTOS; AMAURO; BENITE, 2017)
  • Matérias explanadas: funções orgânicas, interações intermoleculares e solubilidade de compostos orgânicos.

Desenvolvimento das aulas ministradas: essa foi uma aula conjunta com o professor responsável pela disciplina de Cafeicultura. Foi realizada no próprio laboratório de café onde os estudantes puderam presenciar o caminho feito pelo café, desde o fruto maduro até o momento de degustar. Ao longo da aula o professor explanou sobre os assuntos descritos no artigo, juntamente com as explicações químicas.

Ação 3 – Estudo dos polímeros: afrodescendência dos nossos cabelos.

  • Material didático de referência: Cabelo, Identidade e Empoderamento: quebrando com padrões de beleza na escola (ASSIM, 2018).
  • Matérias explanadas: polímeros, interações intermoleculares, reação de saponificação e reação de neutralização. A ação dos xampus e condicionadores serão peça fundamental para o estudo dessas matérias.
  • Desenvolvimento das aulas ministradas: durante a explanação sobre polímeros, foram apresentados alguns materiais que são utilizados para fazer as tranças de origem africana. A partir desse momento, iniciou-se o uso do material didático. Foram aulas com bastante discussões sobre os cabelos e o padrão de beleza eurocentrado trazendo o racismo como pauta presente no cotidiano de pessoas com cabelos afros. Na última aula dessa ação foi realizada a fabricação de xampu com os reagentes cedidos pela Farmácia Uai de Bambuí.

Ação 4 – Sua área e seu/sua cientista.

Nessa última ação, os estudantes foram divididos em grupos de no máximo 4 pessoas e foi pedido que pesquisassem cientistas, inventores, descobridores negros e negras que tenham contribuído na área do curso técnico de cada turma (Administração, Informática, Agropecuária, Manutenção Automotiva e Meio Ambiente). Com as informações encontradas cartazes foram confeccionados e expostos no prédio de aulas do ensino médio durante o mês de novembro.

Mesmo todos tendo encontrado algum representante em sua área, essa ação gerou muitas polêmicas. Inicialmente os estudantes se depararam com a ausência de pessoas negras citadas ao longo de sua formação, pairando a seguinte dúvida: “Será que não tem pessoas negras importantes na minha área ou realmente não são citadas pelos professores?”. Ao pesquisarem na internet, puderam elaborar várias respostas sendo algumas delas: “Há pessoas negras importantes na minha área, mas nunca foram apresentadas para a gente.”; “Há pessoas negras importantes, mas elas são embranquecidas pela mídia.”; “Então eu já conhecia ele, mas ele não é branco?”; “Alguns inventos foram de pessoas negras, mas registrados por pessoas brancas.”; “Alguns assuntos são de pessoas negras e de pessoas não negras, mas só dão destaque a essas últimas.”.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O pensar em novas formas pedagógicas de abordagem da disciplina de Química me fez refletir o quanto somos acostumados com o estilo eurocêntrico imposto.

No início do projeto duas possíveis dificuldades foram imaginadas ao longo do desenvolvimento do mesmo. Uma como sendo a escassez de materiais (artigos, livros, documentários) com a temática necessária e a outra como sendo a resistência dos estudantes a essa nova metodologia. Ambas não ocorreram! A quantidade de materiais é grande. Observa-se trabalhos de educadores, pesquisadores, docentes das mais variadas áreas aplicando a Lei 10.639/03.

Quanto a resistência dos estudantes, essa não houve em momento algum. Por mais que nem todos participassem das discussões, o que é comum nas salas e aulas, o respeito foi completo até nos momentos de questionamentos sobre falas racistas. Não houveram risadas, apontamentos e, muito menos, piadas dentro ou fora da sala, pois foi pedido que relatassem caso ocorressem para resguardar os discentes.

O que foi presenciado foram estudantes em aulas de Química mais aplicadas, utilizando materiais com temáticas negras abordando a história de vários ali presentes, nunca antes tida como importantes e, tudo isso, sem perder o conteúdo da matéria.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? 1. São Paulo: Ed. Jandaíra, 2020. 264p.

 

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira". D.O.U. de 10.1.2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 02 jul. 2023.

 

MACHADO, Carlos. Ciência negra para a descolonização do saber. O Menelick 2º Ato, 2015. Disponível em: http://www.omenelick2ato.com/mais/ciencia-negra. Acesso em: 21 jun. 2023.